“Alambique Modificado”

Nas últimas décadas do século 18 a química se estabelecia como ciência moderna, num processo que culminaria na obra de Lavoisier. Essa nova química atraiu vários brasileiros, que a ela se dedicaram profissionalmente. enuqnato os mais destacados e conhecidos membros desse grupo tiveram formação universitária européia, a obra de João Manso Pereira, ao contrário, revela um caso notável de autodidatismo num indivíduo que jamais saiu do Brasil, não tendo cursado portanto, nenhuma universidade. João Manso era natural de Minas Gerais e deve ter nascido antes de 1750, pois faleceu com mais de setenta anos em 1820, no Rio de Janeiro onde era professor de gramática latina. Seus estudos foram feitos no seminário da Lapa e além do latim estudara também grego e hebraico. Sabia corretamente o francês, como mostram seus escritos, em que também se queixa de não saber inglês. João Manso era celibatário que vivia com uma ex-escrava de nome Joana de melo; era alto, magro e de cor parda. 

Fabricava artigos de natureza a mais variada: mesas decorativas, retortas e vasos de vidro e barro, camafeus de argila, aguardente extraída da raiz de sapé, assim como também fizera os bustos de D. Maria I e de seu marido D. Pedro III, enviados a Lisboa. Os inventos de Pereira e outros da época foram levados ao conhecimento da Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegação, por meio da qual se fizera par a rainha D. Maria, que muito se interessou. Esta escreveu uma carta ao inventor, subscrita pelos ministros Teotônio Gomes de Carvalho e Francisco Soares de Araújo, com data de setembro de 1794, pedindo amostras de seus inventos e oferecendo-lhe real apoio para continuar suas pesquisas. Nas palvras de D. Maria I: “…sou servida expedir ordem para se fornecer a despesa que for necessária para se prepararem destes gêneros quantidade suficiente com que se possam fazer experiências do seu préstimo”. João Manso publicou cinco obras de pequeno formato em que revela a inventividade de um amador estudioso, que procurava inteirar-se o melhor possível do desenvolvimento da ciência e das técnicas químicas contemporâneas. 

A primeira dessas obras é a “memória sobre a Reforma dos Alambiques ou de hum proprio para a distillação das águas ardentes”, impressa em Lisboa em 1797. Logo no princípio do livro o autor comenta: “ainda que neste país os mestres de açúcar e aguardente, persuadidos de que estas cousas não têm conexão alguma com as ciências, façam pouco a preço das autoridades dos Baunés, Macquers e Rosiers…” , demonstrando estar convicto da necessidade de conhecer bem a literatura para se inteirar do estado corrente da arte. Após observar que um alambique é formado de quatro partes, a caldeira ou cucúrbita, o capitel ou cabeça, o bico do capitel e a serpentina, passa a mostrar a ineficiência dos alambiques tradicionais usados no Brasil e propor modificações técnicas para melhorar seu desempenho. São quatro os pontos principais de seu invento, que nem todos no Brasil aceitavam de bom grado: “1. o pequeno diâmetro do pescoço da cucúrbita, 2.a introdução de água fria na bacia que fica junto à bacia do capitel, 3. a falta de água fria no bico do capitel, 4.o supérfluo diâmetro da serpentina”. 

Segundo ele procura demonstrar, a eficiência dos alambiques não dependeria do diâmetro do pescoço da cucúrbita mas “da capacidade e tamanho do extremo do bico do capitel (ou cabeça), e também do diâmtero e número das circunvoluções da serpentina. Aqui ele afirma discordar de Chaptal, para quem a “estreiteza do colo, ou pescoço, dos alambiques seja capaz de se opôr à livre passagem dos vapores”. Ao contrário, diz João Manso, um colo estreito apenas torna o aparelho ineficiente, pois com uma superfície reduzida de condensação, “ou os vapores e gases saem pelo bico da serpentina junto com a aguardente ou pelos lugares em que encaixa o capitel na cucúrbita, e o seu bico na serpentina“. Para testar suas idéias ele decidiu construir um alambique que tivesse na bse do capitel “uma tábua ou lâmina de lata” móvel, com um buraco de um palmo de diâmetro. Assim ele poderia determinar se o aparelho funcionaria melhor com a obstrução ou com seu diâmetro pelno de dois palmos e meio no pescoço. No entanto, sua proposta não teve qualquer receptividade entre os senhores mestres agaurdenteiros. Estes tampouco aprovaram a inovação que João Manso queria introduzir, de uma bacia colocada junto à base do pescoço, contendo água fria. As objeções diziam respeito a um possível retardamento da destilação, que ele rebatia dizendo que isto resultaria num controle muito mais eficaz do processo, com a produção de uma aguardente “muito mais agradável ao gosto”

Em vários trechos João Manso mostra ser partidário da nova química francesa: faz referências ao elemento calórico, seguindo Lavoisier, e eleogia a nova nomenclatura química, em detrimento da antiga. Mais adiante relata que alguns proprietários fluminenses que se dispuseram enfim a construir alambiques segundo suas recomendações obtiveram resultados superiores tanto em rendimento como emsmo em menor tempo de operação, bem como em uma aguardente de melhor qualidade. Ao discutir os materiais que se deveriam empregar na construção dos alambiques, opôem-se fortemente ao uso do cobre que era o material favorito. Alude à “insofrível impertínência” que seus críticos lhe atribuíam, como sendo na realidade uma preocupação meritória para evitar os perigos do envenenamento pelo cobre. Por isso insistia em mandar estanhar caldeira e o capitel de seu alambique, embora reconhecesse que isto era apenas um paliativo. A solução definitiva a seu ver, seria construir a caldeira de fferro fundido e todo o resto em estanho puro. Ironizando, finaliza por dizer que o tradicionalismo vigente no Brasil era tão obruso, levando a uma aguardente de tão má qualidade e com um custo tão alto que ele não se admirará que “bervemente mandarão os senhores de engenho vir da Europa a lenha para os seus fornos”

A Sociedade Literária, da qual João manso participou se opunha às inovações de João Manso: “Os acad~emicos do Rio de Janeiro não acreditam que a condensação se pode fazer nos tubos da serpentina: continuam a dar saída à água (de refrigeração) pela parte inferior: não querem aumentar o diâmtero dos tubos da serpentina, porque esta só serve (segundo eles) para refrescar o licor que eles supõem existir junto com o ar na dita serpentina, e fazendo menção de alambiques milagrosos que destilam sem água, somente pelo contato com o ar. Numa palavra reprovam tudo o que se diz nesta Memória, até mesmo as tinas,, ou recipientes de pau, por estarem mais arriscadas a se desmancharem do que as garrafas de vidro”

João Manso publica ainda “Memória sobre o methodo economico de transportar para Portugal a agua ardente do Brasil”, onde recomenda que se envie para Portugal a agua ardente desidratada, propondo que se exporte a aguardente na prova três-seis, que requer tr~es partes de água para revertê-la à prova de Holanda, “chama-se prova de Holanda á aguardente que corre primeiro até o ponto em que principia a perder a fortaleza”. ele mostra que as dificuldades técnicas que se poderia levantar para a obtenção da aguardente três-seis desapareceriam se se adotasse o aprelho de destilação por ele proposto no livro anterior. Os dois primeiros livros de João Manso revelam sua preocupação em aliar o que hoje chmaríamos de química fundamental com seus aspectos práticos e econômicos. 

Mesmo êxito João Manso não teve ao enveredar por outras pesquisas. Numa tentativa ambiciosa de produzir ferro no Brasil, não teve o êxito que sonhava, apesar do apoio decisivo que obteve da Coroa Portuguesa. esse pode ser verificado pela carta régia mandada em 1799 pelo P´rincipe Regente D. João ao Governador da Capitania de São Paulo Antônio Manoel Castro e Mendonça. Não obstante suas habilidades de autodidata, o projeto de obter ferro não surtiu efeito. Eschwege, em seu“Pluto Brasiliensis”, publicado em 1833, descreve com ironia o ocorrido:“em 1801, um certo João Manso, mulato de nascimento, tendo extraído dos livros alguns conhecimentos químicos e portanto, segundo o modo de pensar dos portugueses e brasileiros, devia estar habilitado para fabricar ferro, obteve do governo a incumbência de construir um novo forno de fundição…Construíram eles um alto forno de tijolos, nas terras do capitão mor de Sorocaba e assentaram um fole manual, certos de terem feito o necssário para dar início a fundição…Como é fácil prever, apesar de acionarem o fole e descarregarem o carvão e minério no forno, nehum ferro apareceu no cadinho. João Manso e o inspetor fugiram as escondidas…João Manso, homem de muito tino, que mais tarde vim a conhecer, ria-se gostosamente de toda essa história, tendo chegado á conclusão de que para fabricar ferro em grande escala, não bastavam conhecimentos de química”

Outra pesquisa, no intuito de obter salitre, ou nitrato de potássio, componente essencial da pólvora, também não logrou êxito. O processo desenvolvido pelo químico francês Baumé consistia na coleta de urina e na lenta oxidação da uréia a ácido nítrico, que em presença de cal, daria o nitrato de cálcio. Em seguida a adição de carbonato de potássio obtido das cinzas de plantas levaria a uma solução do nitrato de potássio desejado, juntamente com a precipitação do carbonato de cálcio. A mistura seria então filtrada e a solução obtida evaporada e depois o sólido resultante sofreria recristalização para dar o salitre sob forma cristalina. O autor justifica a escolha de Santos como o local ideal para localizar sua nitreira artificial, devido ao calor e umidade excessivos, seria mais fácil a puterfação da urina e consequentemente á produção de salitre, além do que Santos era a vila mais populosa depois de São Paulo, e assim com maior facilidade para coleta de urina. João Manso, esperava com tais condições favoráveis reduzir o tempo de fabricação de seis meses obtido por Baumé em país de clima frio. Para fabricação da nitreira, feita de um grande tanque forradio de arguila e com cobertura de palha, pretende utilizar como mão de obra os presos sentenciados das galés, desde que o Príncipe Regente concordasse, assim como índios assalariados. è notável que em nehum momento ele menciona a possibilidade de utilizar escravos. Ao concluir, João Manso revela que, embora o projeto esteja por realizar (o que provavelmente nunca se deu) ele já havia tentado com êxito o experimento, em pequena escala, usando como recipiente uma sopeira de louça de Macau. 

Manso descreve que o princípio do processo requer apenasduas substâncias: uma que apodreça e d~e origem ao ácido nítrico e outra que lhe subministre a potassa. Numa de suas costumeiras digressões, João manso descreve uma forma alternativa e extremamente insólita e fantasiosa de obter salitre: aproveitar a putrefação de cadáveres. Segundo Moreira de Azevedo, mesmo depois de aposentado e residindo em Angra dos Reis, João Manso “propôs-se a extrair salitre das sepulturas, sendo parte do produto para ele e parte para a igreja, mas o povo, logo que soube, começou a clamar e apareceram pasquins dizendo que o químico nem deixava descansar os mortos”

João Manso havia frequentado a Sociedade Literária do Rio de Janeiro, a malfadada agremiação científica fundada em 1786 sob os auspícios do vice reiD. Luiz de Vasconcelos e desbaratada por seu sucessor o Conde de Resende em 1794. João Manso foi logo julgado inocente quando da intervenção e dissolução ordenadas pelo Vice-rei. Este a considerou subversiva pela forma livre com que seus sócios aparentemente discutiam temas políticos, em especial os sucessos da Revolução Francesa. Do ponto de vista privilegiado de quem vive hoje é fácil fazer pouco caso do diletantismo, por vezes ingênuo ou pitoresco, que permeia a obra de João manso. Convém lembrar, todavia o atraso do meio em que viveu; isso faz de sua obra merecedora de atenção. Seu espírito empreendedor e sua disposição para estudar, observar e expeimentar eram inusitados na época colonial. Só após a transferência do governo do Reino para o Brasil em 1808, é que ocorreriam as primeiras tentativas de institucionalizar as atividades científicas de que ele foi de certa forma um precursor, embora hoje seja quase totalmente desconhecido.

A obra de João Manso Pereira, químico empírico do Brasil colonial foi resgatada pelo historiador Carlos Filgueiras, doutor em química pela Universidade de Maryland, pós-doutorado em Cambridge, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Química. 

Fonte: 
João Mando Pereira: químico empírico do Brasil colonial, Química Nova, 16(2) (1993) pp155-160
 
Agradeço ao bibliotecário Evanildo ([email protected]) pela obtenção deste artigo em janeiro de 2003

acesso em janeiro de 2003
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