A hipertensão arterial atinge cerca de 15% a 20% da população e instala-se no organismo silenciosamente. Na maioria dos casos, a doença não apresenta sintomas característicos que permitam chegar a um diagnóstico. Quando é detectada alteração na pressão, a hipertensão já começou a produzir danos no organismo, o que, no entanto, está próximo de ser modificado. A bióloga Dulce Casarini, professora da Nefrologia da Unifesp, descobriu que os indivíduos que têm a doença ou a desenvolverão carregam um possível sinalizador na urina. Se isso for comprovado, dois métodos desenvolvidos pela pesquisadora e por colaboradores poderão se tornar testes indicativos da possibilidade de uma pessoa manifestar a doença. “Com isso, o indivíduo poderá iniciar mais cedo a prevenção e o tratamento”, afirma Dulce. A bióloga reforça, no entanto, a necessidade de o paciente ter a pressão regularmente avaliada por um médico. “O teste poderá prever o surgimento da doença, mas é o profissional da saúde quem faz o diagnóstico final.” Dulce Casarini, em parceria com pesquisadores do Instituto do Coração (Incor) da Universidade de São Paulo, desenvolveu um kit para medir a presença da proteína na urina humana, que poderá tornar-se teste preditivo da hipertensão, inédito no mundo.
O provável indicador de hipertensão encontrado pela bióloga é uma forma da proteína específica ECA-1 (enzima conversora da angiotensina 1), que é caracterizada por ter peso molecular de 90 quilodáltons (kDa), a unidade usada para medir massa atômica. A ECA-1 de 90 kDa integra uma família maior. No organismo humano, está presente também com 65 kDa e 190 kDa e é encontrada em vários tecidos (artéria aorta, glândula adrenal, fígado, pulmões e rins). Essa classe de proteínas desempenha papel importante no surgimento da hipertensão, pois atua no sistema ligado ao equilíbrio da função cardiovascular chamado renina/angiotensina e produz uma substância que diminui o calibre dos vasos sangüíneos.
Dulce descobriu as formas de 65 kDa e 90 kDa da enzima acidentalmente em 1983, quando trabalhava na identificação das proteínas presentes na urina humana, durante estudo para avaliar um medicamento anti-hipertensivo. Inicialmente, a pesquisadora pensou ter ocorrido um erro provocado pelo método que utilizava. “Levei 20 anos para chegar a essas evidências”, afirma Dulce Casarini. A pesquisadora duvidou muito de seus achados e insistia nos testes. No pós-doutorado, na França, Dulce repetiu os testes e a proteína foi novamente detectada. De volta ao Brasil, ela decidiu estudar o problema em humanos e avaliar se a presença da proteína na urina era determinada por um fator genético. Ela desenvolveu vários testes com animais de laboratório, em colaboração com o pesquisador José Eduardo Kriegger, do Incor (Instituto do Coração). Dulce e Kriegger comprovaram a hipótese e também detectaram o seguinte padrão: os ratos hipertensos tinham as formas de 90 kDa e 65 kDa na urina. Na amostra dos animais sem a doença foram encontrados dois resultados: um grupo apresentava as enzimas de 190 kDa e 65 kDa; o outro, as de 190 kDa, 90 kDa e 65 kDa.
Após um período de acompanhamento, os cientistas verificaram que os ratos não-doentes portadores das três formas da enzima se tornaram hipertensos. A presença da proteína de 90 kDa indicava a propensão à doença. A molécula passou a ser considerada um possível marcador biológico da hipertensão, descoberta perseguida por cientistas de todo o mundo. Para certificar-se dos resultados, foram feitos outros experimentos com animais saudáveis e hipertensos. Mas era preciso provar que o mesmo ocorreria em seres humanos. Com o apoio dos pesquisadores Frida Plavnik e Odair Marson, ambos da Nefrologia, foram avaliadas 1.500 pessoas hipertensas e 550 sem hipertensão. Também foram testados indivíduos de quatro gerações de duas famílias.
Com a confirmação do padrão, Dulce e Krigger desenvolveram dois métodos para detectar a proteína na urina humana, em colaboração com cientistas do Departamento de Biofísica da Unifesp. Em novembro de 2001, eles obtiveram o registro da patente (nos EUA e no Brasil) do possível indicador biológico da doença e dos métodos para detectálo na urina e em outros tecidos. A patente protege também a técnica que pode permitir, no futuro, o desenvolvimento de kits de teste para saber quem está predisposto a ter a doença. Para comprovar que o exame de detecção realmente desempenha um papel preditivo são necessários dois estudos populacionais. Um deles, em andamento, avalia 1.600 pessoas. Outro de verá fazer o acompanhamento de 5 mil indivíduos por no mínimo cinco anos.
Após quase 20 anos de pesquisa sobre um novo marcador genético da hipertensão, a bióloga Dulce Casarini estava preparada para qualquer tipo de questionamento científico. Quando apresentou seu trabalho em um conferência em Oxford, em 99, no entanto, foi pega de surpresa por uma pergunta das mais simples: “Você já patenteou sua descoberta?”, indagou um pesquisador. Dulce olhou para seu marido na platéia, que sinalizou com a cabeça – um tanto desesperado – para que ela respondesse sim. Ela atendeu ao comando e blefou. “Nunca tinha pensado em patente até aquele momento’, admite a cientista, professora de nefrologia da Universidade Federal de SP (Unifesp). ‘O pesquisador só pensa com a barriga na bancada, não está preocupado com patenteamento.” Essa era a realidade predominante no meio acadêmico até recentemente. O pesquisador, tradicionalmente, sempre foi valorizado pelo número de artigos científicos publicados, não pela produção de patentes. Quando não era totalmente ignorada, como no caso de Dulce, a patente – ou seja, a proteção intelectual de uma descoberta – era vista com maus olhos pela maioria. Afinal, se a ciência é financiada com dinheiro público, seus resultados também devem ser públicos, para o benefício da sociedade.
Fonte:
http://www.unifesp.br/comunicacao/jpta/ed162/pesq6.htm
http://www.estadao.com.br/ciencia/noticias/2001/nov/20/303.htm
http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe. jsp?id=7341
acesso em janeiro de 2003
http://www2.fapesp.br/indct/cap10/cap10.htm
acesso em maio de 2003