Todas as células de um determinado organismo contêm os mesmos genes. Mesmo assim, não há confusão entre as funções que as células desempenham. O fígado não vai deixar de produzir enzimas para fazer cabelo nem a pele vai liberar adrenalina. A harmonia se deve aos chamados promotores, regiões regulatórias dos genes que determinam em que momento, quantidade e local as substâncias devem ser produzidas. A partir do controle desses maestros do organismo, o pesquisador Adilson Leite, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolveu com sua equipe um processo de produção de proteínas em plantas e fez com que sementes de milho produzissem o hormônio de crescimento humano.
Os resultados obtidos no final de setembro ainda são preliminares, mas promissores. As sementes de milho modificadas geneticamente elaboraram um hormônio de crescimento ou hGH (do inglês human Growth Hormone) que até o momento tem se mostrado idêntico ao produzido pelo organismo humano. Pode estar se abrindo um caminho para a fabricação, em larga escala e a custos reduzidos, de um composto químico de grande interesse médico. Indispensável no tratamento de crianças com problemas de crescimento, o hGH é atualmente obtido por meio de bactérias. Segundo Leite, com o rendimento já obtido, bastaria uma área equivalente a um campo de futebol para produzir uma tonelada de milho, o suficiente para o tratamento de aproximadamente mil crianças por ano.Paranaense, graduado em Farmácia, Leite resolveu há três anos aplicar os conhecimentos das pesquisas básicas sobre a regulação de genes em sementes, que estudava desde 1988, quando ingressou no Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp.
As vantagens de se obter o hormônio do crescimento a partir de plantas, afirma Leite, são inúmeras. Inicialmente, a proteína era retirada diretamente da hipófise de cadáveres, o que abria a possibilidade de contaminações. Depois, a substância passou a ser produzida em bactérias. Estas, mesmo não sendo patogênicas, têm que ser bem purificadas, pois contêm proteínas que podem causar febre e alergia, entre outras reações. As proteínas originárias das plantas são muito mais seguras. Não há indicação de que elas causem alguma doença ao homem. Além disso, fica muito mais barato produzir uma planta do que um animal transgênico.
Há anos os centros de pesquisa do mundo inteiro procuram induzir os vegetais a produzir substâncias que lhes são estranhas, utilizando toda a planta, as folhas ou a raiz. Na trilha de poucos especialistas dos Estados Unidos e do Canadá, Leite elaborou um mecanismo de expressão genética específico em semente, o órgão da planta mais apropriado para armazenar proteínas. As sementes (sobretudo a de cereais, como o milho, o sorgo e o arroz) têm um tecido especializado, o endosperma, um reservatório natural de proteínas, utilizadas quando o embrião germina. Adilson Leite, selecionou a parte do gene humano que codifica o hormônio do crescimento e a introduziu no endosperma, tecido que regula a produção de proteína do milho e fornece os nutrientes necessários para o embrião. Desta forma, a equipe preparou a semente para produzir hGH, como se fosse uma proteína a ser armazenada. Leite iniciou seu projeto separando as duas regiões básicas de todo gene: a estrutural, que indica o que o gene deve produzir (glicose, enzimas ou hormônios, por exemplo), e a regulatória, que controla em que partes do organismo, quando e com que intensidade ele deve atuar. Seu plano: tomar o promotor que controla a produção de proteínas de reserva em sementes de sorgo (Sorghum sp.), uma planta próxima do milho (Zea mays), e a ela anexar a região estrutural do gene que controla a síntese de hGH. Assim, o gene estaria preparado para produzir hGH, como se fosse uma proteína a ser armazenada nas sementes, de acordo com as ordens transmitidas pelo trecho regulador. Os músicos seriam trocados, mas o maestro não perceberia.
Leite assegura que mesmo produzindo menos proteína ou amido a semente germinará do mesmo modo, porque as variedades atuais resultam de melhoramento genético e há bastante material de reserva para o embrião. No início, Leite trabalhou em colaboração com Hamza El-Dorry, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), que isolou o gene do crescimento humano, usado em estudos de produção de hGH em bactérias. Com uma cópia desse gene, moldou uma estrutura, o chamado cassete para a expressão de proteínas heterólogas (não produzidas pelo organismo em condições normais) em plantas transgênicas. O plasmídeo (DNA circular) que os pesquisadores fizeram, para funcionar direito, precisa de dois genes: um que levará à produção de hGH e outro que promove a resistência a um herbicida, cuja função é selecionar as plantas modificadas, aptas a produzir hGH. Esse material genético tem origens variadas. Há material genético proveniente do de Coix (Coix lacryma-jobi, também conhecida como lágrimas-de-nossa-senhora), uma gramínea aparentada do milho, e do vírus do mosaico-da-couve-flor. O plasmídeo integrou-se ao genoma de uma agrobactéria, a Agrobacterium tumefaciens, hábil em infectar plantas (são elas que causam os tumores ou protuberâncias facilmente perceptíveis em caules de árvores). Definido como um vetor de transformação, o plasmídeo encaixa o gene estranho em regiões ativas do cromossomo do milho.
Leite fez com que as bactérias infectassem inicialmente folhas de tabaco (Nicotiana tabacum), que permitem a transferência de genes sem grandes dificuldades. Após seleção com um antibiótico, 67 plantas cresceram normalmente e produziram hGH. Mas nem tudo estava resolvido. “Para produzir proteína, a semente de tabaco é amadora, com um espaço restrito de armazenamento de proteínas”, diz ele. A passagem para o milho exigiu alguns ajustes. Um deles, a substituição do antibiótico por um herbicida, ficou a cargo de Paulo Cézar De Lucca, que faz doutorado, e de Edson Luís Kemper, em pós-doutoramento, e Márcio José da Silva, pesquisador do CBMEG. As sementes de milho, estas sim, são profissionais, bem maiores – um galpão de uma fábrica, enquanto a outra seria equivalente a um carrinho de supermercado. Com o tabaco, diz Leite, o rendimento era de 0,2%. Em milho, os resultados preliminares indicam uma produção próxima a 0,5% de proteína solúvel, de modo que de uma tonelada possam ser extraídas 250 gramas de hGH.
Germinaram 4.000 sementes de milho, cujas linhagens incorporaram o gene de hGH (ver ilustração do processo). Das 300 já analisadas, quatro incorporaram o gene estrangeiro ao genoma e uma, pelo menos, produz a proteína desejada na semente. “Foi uma surpresa que tenha funcionado”, reconhece Leite. Tabaco e milho, lembra ele, são plantas bem distintas. A primeira, uma dicotiledônea, tal qual o feijão e soja, é mais conhecida e, principalmente, sensível às agrobactérias disponíveis quando o trabalho começou. O milho, uma monocotiledônea, como o arroz, era indiferente às agrobactérias de três anos atrás. Só pôde ser atingido por um novo plasmídeo, chamado superbinário, que fez as bactérias mais virulentas. Mas o gene continuará se expressando? Leite não arrisca um palpite, mas conta que no tabaco a técnica permitiu que o gene se mantivesse ativo durante sete gerações seguidas, um resultado considerado ótimo, que indica que o material foi incorporado pelo genoma da planta. O milho que leva o gene humano para poder produzir o hormônio do crescimento não será comercializado como alimento transgênico, mas sim como insumo para a indústria farmacêutica. Leite acredita que o cereal transformado em “biofábrica” estará sendo produzido em escala comercial dentro do prazo de um ano.
A invenção traz uma nova perspectiva para a produção do hormônio do crescimento humano (hGH), proteína utilizada no tratamento de crianças acometidas de nanismo. A substância, que no mercado custa cerca de US$ 20 milhões o quilo, está sendo obtida a partir de sementes de milho geneticamente modificadas. Pelos cálculos de Leite, dentro de aproximadamente um ano o cereal, transformado com os recursos da engenharia genética numa biofábrica de interesse farmacêutico, já estará sendo produzido em escala industrial. Ainda não há previsão de quando esse hGH será usado comercialmente, uma vez que as conversações com a iniciativa privada estão em andamento. O professor Leite estima que seria necessário um terreno equivalente a meio campo de futebol para produzir uma tonelada desse milho especial, quantidade suficiente para obter 250 gramas de hGH. Além do hormônio do crescimento, revela o pesquisador, a mesma técnica está sendo empregada para a produção de pró-insulina humana, primeiro passo para a obtenção da insulina.
A decisão da transnacional Monsanto de interromper estudos em biopharming, tomada em outubro deste ano, não deve ser interpretada como uma demonstração da inviabilidade da tecnologia. A Monsanto estudava formas de introduzir genes em plantas que, quando expressos, produziriam compostos a serem utilizados em fármacos. A tecnologia tem um elevado potencial e pode ser vantajosa para o Brasil: é mais barato utilizar vegetais do que bactérias para a obtenção dos compostos desejados. No País, o pesquisador Adilson Leite, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp, era o que estava mais próximo de obter um produto comercial em biopharming, o hormônio de crescimento humano, a partir de milho. A Agência de Inovação da Unicamp está negociando o licenciamento dessa pesquisa. De acordo com Alberto Portugal, diretor executivo da Agência, a decisão da Monsanto não afetou essas negiações. “Difícil avaliar as razões que levam uma empresa do porte da Monsanto a abandonar uma linha de pesquisa assim, mas a companhia está promovendo uma série de cortes de gastos e quando se passa por esse processo todos procuram preservar seu core business (no caso da Monsanto, produção de transgênicos alimentares)”, destaca Paulo Arruda, pesquisador do CBMEG e diretor científico da empresa de biotecnologia Alellyx. “Trata-se de uma tecnologia nova, ainda leva um tempo de maturação para termos produtos”, completa. Hoje, há pesquisadores e empresas que estudaram e produzem enzimas e anticorpos para diagnósticos a partir do biopharming.
Arruda assumiu as aulas que eram do professor Adilson Leite, que morreu este ano. Adilson desenvolveu hormônio do crescimento humano (hGH) a partir de sementes de milho, que foram modificadas geneticamente para “fabricar” o composto. A Unicamp fez o pedido de patente no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que ainda está sendo avaliado pelos técnicos. “Hoje, temos um aluno de doutorado, que era da turma do Adilson, pesquisando produção de insulina em semente de milho. As pesquisas envolvendo o hGH foram feitas em parceria com a Embrapa, que está dando continuidade aos estudos do Adilson”, conta Paulo Arruda. “Planta é mais barato. Obter proteínas recombinantes requer reatores, uma engenharia muito mais sofisticada”, comenta Arruda. O uso de bactérias necessita de um método industrial, com rígidos processos de controle de qualidade, e é mais caro. Já a produção a partir de plantas precisa de estufas, cultivo em sistemas controlados, que seriam mais baratos.
No entanto, segundo explica Carlos Roberto Jorge Soares, um dos fundadores e acionistas da empresa Hormogen, fabricante de hormônio do crescimento a partir de bactérias, ainda há dificuldades em se purificar o composto extraído das plantas transgênicas. A Hormogen pertence, hoje, à farmacêutica Biolab. “Plantas (transgênicas) ainda são pouco usadas para setor farmacológico. Há pesquisas, mas disponíveis para comercialização temos basicamente produtos obtidos a partir do trabalho com células de mamíferos, leveduras e bactérias, já que existem conhecimento e domínio sobre esses organismos”, conta Carlos Soares, da Hormogen. Pesquisador do Centro de Biologia Molecular do Ipen, ele foi um dos fundadores da empresa, que estava incubada no Cietec até ser vendida para a Biolab. Os pesquisadores da Hormogen produziram hGH utilizando-se de bactérias e células de mamíferos. A Biolab deverá construir uma planta-piloto para produção em escala industrial do hGH obtido pelas pesquisas desenvolvidas pela Hormogen. Há uma patente requerida junto ao INPI sobre o vetor do processo de purificação.
Fonte:
http://www.fapesp.br/ciencia49.htm
acesso em maio de 2002
http://revistagalileu.globo.com/Galileu/0,6993,ECT352631-1717,00.html
acesso em julho de 2002
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/julho2002/unihoje_ju183pag4a.html
acesso em novembro de 2002
http://www.inovacao.unicamp.br/inovando/inovando-biopharming.shtml
acesso em janeiro de 2004