Alguém conhece uma trenocleta? A combinação de trenó com bicicleta – uma montagem feita com armação de guarda-chuva e fitas coloridas presa a um guidom – saiu da cabeça inventiva de Deneir de Souza Martins, de 48 anos. Artista plástico e animador cultural, ele consegue ver no que os outros jogam mais do que apenas lixo. E cria com sucata brinquedos que seduzem a garotada. Invenções tão divertidas que já foram até motivo de exposição do artista no Centro de Artes e Cidadania, espaço que existe desde janeiro em Realengo, Zona Oeste do Rio. Brinquedo não precisa ser caro e moderno para agradar. Deneir pode deixar uma criança completamente fascinada pelo simples movimento de pedalar. Isso faz girar a trenocleta e coloca em movimento as fitas coloridas do brinquedo. Os meninos adoram. E o robô desenhista? Engenhoca de canetas hidrográficas presas a um pedaço de garrafa descartável e ligadas num motorzinho, que desenha sozinha círculos sobre uma folha de papel. Tem ainda outro robozinho que anda, pisca luzes e toca música como qualquer um daqueles que se vêem nas lojas modernas. A diferença é que o ponto de partida para sua confecção é bem menos sofisticado: a armação de um ventilador velho.
Deneir é aquele caso típico da necessidade que faz surgir a criatividade. Morando em Piabetá, ele sentia a constante falta de material para suas aulas de arte e educação nos Cieps onde era animador cultural. Também percebia que os outros professores ficavam limitados pelo mesmo problema. “Então resolvi bolar um jeito alternativo”, conta. No começo, ele fazia apenas pincéis, tintas e papéis para as aulas, e ensinava as técnicas desse preparo aos outros professores. Mas o desejo de inventar coisas diferentes só crescia. “Hoje, além dos brinquedos a partir de materiais recicláveis e sucata, também pinto quadros”, explica. Cada um dos brinquedos, para ele, só tem graça se for criado especialmente para cada criança. Em compensação, sua fonte de matéria-prima agora é inesgotável. Vem do que ele mesmo cata na rua e das doações que recebe. Seja o que for – garrafas pet, canos de PVC, tampinhas de garrafa – praticamente qualquer coisa, em suas mãos, se transforma em arte.
São tantos os brinquedos que inventou, mais de 90, que ele está pensando em escrever um livro, mostrando tudo. Há desde os mais singelos aos pedagógicos e até instrumentos musicais. “As pessoas pensam que a simplicidade dos materiais não atrai as crianças, quando na verdade, os mais simples são, às vezes, os mais populares“, conta. O que é fácil de entender. “As crianças que não têm como comprar se encantam com a possibilidade de fazer seus próprios brinquedos. Principalmente se eles partem de uma idéia fácil”,, explica. Mas mesmo os filhos de famílias com bom poder aquisitivo gostam da novidade de ver um brinquedo que não pode ser encontrado nas lojas. “Dá para conquistar a todos”, orgulha-se o artista. No rol dos musicais, o garrafone faz o maior sucesso. São várias garrafas penduradas por cordinhas, cada uma delas com um volume diferente de água. “Quanto mais água tiver, mais grave será o som; quanto menos água, mais agudo”, diz. Já as cornetas malucas são feitas de tubos de PVC, conduítes, canos e garrafas; enquanto o violão surge a partir da montagem de madeira, arame e uma lata de azeite.
Na linha pedagógica, também há muita coisa. “Tem os ábacos feitos de tampinha de garrafas para ensinar as crianças a contar e os brinquedos para exercitar coordenação motora. Num deles, deve-se fazer circular uma armação de arame com um anel sem deixar que um encoste no outro“, acrescenta. Há ainda jogos educativos com perguntas sobre sinais de trânsito ou sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Outros foram pensados especialmente para exercitar a coordenação de crianças com deficiência da Ong Contato, onde trabalha há cinco anos. Seus alunos do Ciep Nação Ianomâmi também não têm do que se queixar. Volta e meia ganham presentes. “Quando visito uma escola e percebo que um aluno se identifica com o brinquedo, dou ou faço um igual para ele. É muito bom ver que com o meu trabalho posso trazer alegria“, diz. Vender o que faz, nem pensar. “As peças passam a servir de modelo, vão para exposições ou dou a alguém que mereça.“.
Além das oficinas de arte e exposições que realiza esporadicamente, o trabalho deste animador cultural já foi visto no projeto Murais Urbanos, que cobria com pinturas as pichações nos muros da cidade; nos oito painéis de Dança das Marés, pintados com a ajuda de 62 jovens do complexo da Maré; na capacitação de professores nas Oficinas de Material Alternativo realizadas na UERJ; na Recicloteca, em Laranjeiras, e em espaços como o Centro de Artes e Cidadania de Realengo, onde esteve passando gratuitamente aos professores da região as técnicas que usa, como giz de cera, tintas, papel e instrumentos didáticos. As crianças aprendem que não existem limites para a imaginação. “Isso ajuda a trabalhar a auto-estima da criança. Quando você trabalha com lixo, que é pobreza, você ajuda a transformar essa realidade dela”, ensina Deneir.
Mais gratificante do que os títulos é a reação de admiração que percebe em cada criança. “Fico feliz quando minha sobrinha chega lá em casa e vai correndo para o meu ateliê brincar”, diz. No Centro de Artes e Cidadania – onde a exposição das criações de Deneir ficou em cartaz -, o espaço é gratuito. Mas em troca dele, os artistas devem oferecer oficinas de arte à comunidade. Tal como fez Deneir. O produtor do centro, Ângelo José Ignácio, de 45 anos, afirma que o trabalho de Deneir se enquadra perfeitamente ao perfil que desejam imprimir à instituição. Deneir Martins é artista plástico, participou de várias exposições individuais e coletivas. Em 1995 ganhou o prêmio Africanismo, com o quadro Bambu Totêmico, exposto no MAM (Museu de Arte Moderna). Um dos fundadores do projeto Murais Urbanos, trabalha como animador cultural pela Secretaria de Estado de Educação. Coordena projetos para o Projeto Recriarte da Fundação para a Infância e Adolescência. Apresentou mensalmente, de 1998 a 2000, oficinas de reciclagem de materiais e de sucatas no programa Oficina de Desenho de Daniel Azulay, na TV Bandeirantes.
Fonte:
http://www2.uerj.br/~decult/projetos/oficinas02/matalter.php
http://www.vivafavela.com.br/publique/cgi/public/
http://jornalnacional.globo.com/semana.jsp?id=27967&mais=1
acesso em julho de 2003
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