Trio Elétrico

Existia em Salvador um conjunto musical, criado por Dorival Caymmi, que animava algumas festas e reuniões de fim de semana, e que se apresentava nas estações de rádio. Começava, então, a fazer sucesso na Bahia o grupo Três e Meio, cujos integrantes eram o próprio Caymmi, Alberto Costa, Zezinho Rodrigues e Adolfo Nascimento, o Dodô. Em 1938, com a saída de Caymmi, o grupo reestruturou-se e passou a contar com sete componentes, incluindo Osmar Macêdo. 

Em 1942 em apresentação na cidade de Salvador, o violonista clássico Benedito Chaves (RJ) mostrou pela primeira vez ao público local um “violão eletrizado”. Dodô e Osmar, ávidos em conhecer tal instrumento, foram assistir ao show no cine Guarani e ficaram extremamente entusiasmados. Embora fosse um violão comum, importado e com um captador inserido à sua boca, o instrumento era muito primitivo e possuía microfonia. Dodô, porém, incansável na busca da superação deste problema, construiu em poucos dias um violão igualzinho ao de Benedito Chaves para ele, e um cavaquinho para Osmar.


Apesar da microfonia persistir, os dois uniram-se mais uma vez para formar a “Dupla Elétrica” e começaram a se apresentar em diversos lugares. Num determinado dia, Dodô resolveu esticar uma corda de violão sobre a sua bancada de trabalho e prendê-la nas extremidades; sob a corda, colocou um microfone preso à bancada. Quando a dupla ligou o microfone, algo inacreditável aconteceu um som limpo, que parecia até o de um sino. Estava, então, descoberto o princípio e logo foi possível perceber que o “cêpo maciço” evitava o fenômeno da microfonia e assim, com o nome de pau elétrico, nasceu a guitarra baiana. Outras pessoas, em outros países, pesquisavam a amplificação sonora de instrumentos pela energia, e até hoje não se tem certeza de quem foi mesmo que chegou primeiro à guitarra elétrica, se os dois baianos ou os dois americanos, Léo Fender e Doc Kauffman. Mas estes, no ano seguinte, patentearam o invento. 

Em 1951, na quarta-feira anterior ao Carnaval, o famoso “Clube Carnavalesco Vassourinhas do Recife”, com 150 componentes, apresentou-se em Salvador com metais, alguma madeira e pouca percussão. Na manhã do dia seguinte à apresentação dos pernambucanos, Dodô e Osmar começaram a trabalhar no projeto de construção do que viria a ser o “trio elétrico”. Osmar, proprietário de uma oficina mecânica, retirou do galpão um Ford 1929, conhecido como “Fobica”, e iniciou o processo de decoração pintando em todo o veículo vários círculos coloridos como se fossem confetes e confeccionou em compensado, no formato de violão, duas placas com os dizeres “Dupla Elétrica”. Dodô, com formação em radiotecnia, decidiu montar uma “fonte” que, ligada à corrente de uma bateria de automóvel, iria alimentar a carga para o funcionamento dos alto-falantes instalados na Fobica (onde eles se apresentariam com os seus “Paus Elétricos”). Em pleno domingo de Carnaval, a dupla subiu a ladeira da montanha em direção à Praça Castro Alves e Rua Chile, por volta das 16 horas, e arrastou milhares de pessoas. 
Dodô e Osmar, em cima da Fobica decorada e eletronicamente equipada, fizeram, assim, sua primeira aparição como os inventores do trio elétrico. A dupla resolveu convidar o amigo e músico Temístocles Aragão para formar o que se chamaria de trio elétrico. O nome foi ganhando fama, fazendo com que, nos anos seguintes, as pessoas ouvissem o som eletrizante e dissessem: “Lá vem o trio elétrico”. Em 1952 A fábrica de refrigerantes “Fratelli Vita” decidiu patrocinar o trio elétrico de Dodô e Osmar abandonaram  a velha Fobica e passaram para um veículo grande, colocando nele oito alto-falantes, corrente elétrica de geradores e iluminação com lâmpadas fluorescentes. O patrocínio permaneceu até 1957, época em que o trio elétrico de Dodô e Osmar apresentava-se nas ruas centrais de Salvador e animava carnavais fora de época no interior do Estado. 

O primeiro desfile do trio elétrico de Dodô e Osmar foi recebido com vaias de um lado e aplausos do outro. É que a estreia da Fobica de Dodô e Osmar aconteceu às 17h do domingo de Carnaval do ano de 1950, durante o desfile do bloco dos Fantoches da Euterpe, cuja diretoria, de fraque e cartola, pediu para que a “dupla elétrica” desligasse o carro de som. Quando eles obedeciam, a multidão pedia que voltassem a tocar as marchinhas de frevo. Resultado: venceu a turma do “quero mais” e a Fobica elétrica, com os músicos tocando os chamados “paus elétricos”, um violão e um cavaquinho, que depois seria chamado guitarra baiana, levantou a poeira das ruas até a terça-feira. 

A Praça Castro Alves ainda não era a praça do povo, como cantou há mais de 100 anos o poeta. Era o cenário onde as elites baianas faziam o seu carnaval. Primeiro com os carros alegóricos dos clubes, depois com carros conversíveis americanos. A banda do Clube Fantoches da Euterpe tocava uma ária da ópera de Verdi, enquanto os cavalheiros fantasiados, arautos de uma realeza ilegítima, cavalgavam animais imponentes na frente do carro alegórico, com a rainha e as princesas do carnaval daquele ano jogando beijos, confetes e serpentinas para a assistência. Nesse momento aparece, subindo a praça, aquela geringonça decorada por ele, um Ford bigode 1929. Foi patético e grandioso. Quando a banda interrompeu a partitura da ópera, a pequena Fobica, com seus dois ocupantes na traseira, responderam com o pau elétrico e a guitarra. O som da geringonça esmagou, o frevo, e a banda dos clubes. Foi o desastre simbólico de uma revolução social. O povo ganhou o espaço da praça e passou a mover a Fobica e empurrar a felicidade. 

Dirigida por Olegário Muriçoca, o primeiro motorista de trio do mundo, e acompanhada por uma pequena multidão, a Fobica foi abrindo espaço na avenida em direção à Praça Castro Alves, onde haveria mais espaço para tocar. Estava criado também o frevo baiano, uma mistura entre o verdadeiro frevo pernambucano e a marchinha carioca, como definiu Caetano Veloso. O som saía de duas cornetas, uma instalada na frente e outra atrás. Numa faixa na parte externa, estava escrito: “A dupla elétrica”. No chão, um grupo de músicos tocava caixa, surdo, bumbo, pandeiro e prato, acompanhando a marcha lenta da Fobica. 

Naquela época, o Carnaval de Salvador em nada lembrava a festa popular de hoje. A brincadeira no centro era apenas um desfile de fantasias ao som de marchinhas lentas, assistido por pessoas nas calçadas. Algumas chegavam a levar as cadeiras para descansar entre a passagem de um bloco e outro. O surgimento do velho calhambeque pilotado por dois jovens tocando instrumentos esquisitos foi mais que uma revolução, a folia nunca mais foi a mesma. No ano seguinte, a Fobica voltou às ruas, mas com alguns avanços: o velho Ford foi substituído por uma camionete com oito alto-falantes e iluminação fluorescente, e a dupla elétrica ganhou mais um integrante, o violonista Temístocles Aragão, além de muitos fãs. O trio montado sobre uma picape Chrysler, que tinha nas laterais a inscrição “O Trio Elétrico”, revolucionou definitivamente o Carnaval baiano. Na cronologia da história do Carnaval, uma coisa é certa: o trio elétrico e a guitarra baiana foram o pontapé inicial para que a festa popular na Bahia chegasse hoje ao grande evento mundial que é. Mesmo com a saída de Aragão, o nome que pegou para o carro foi o de trio mesmo.

Um detalhe faz a história do trio elétrico ainda mais bonita: o único objetivo do invento foi dar mais alegria à festa de Rua de Salvador, e prova disso é que os pais nunca patentearam o carro de som eletrizado. Folião autêntico, não tinha trio próprio e para desfilar neles, pagava aluguel, bancado todos os anos por um patrocínio suado, que custava a sair: “Cansei de ver seu Osmar com as mãos na cabeça, sem saber se ia conseguir ou não desfilar”, conta Moraes Moreira, o primeiro cantor a subir em trios elétricos, que até 1975 apresentavam apenas música instrumental, “Tudo o que meu pai ganhou em vida foram homenagens”, conta o guitarrista Armandinho, um dos sete filhos de Osmar, seis deles músicos. Para subir nos trios, Osmar necessitava de um elevador, uma vez que usava muletas, devido a um acidente durante as obras do teatro Castro Alves, na época em que trabalhava para a montagem do palco e cortinas do teatro. 

O êxito do trio elétrico foi estrondoso e mais tarde seria definitivamente glorificado pelo então tropicalista Caetano Veloso: “Atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu.” Em 1974 depois de uma longa ausência, a dupla  Dodô e Osmar retornou ao Carnaval com uma nova formação “Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar”. Na ocasião, eles gravaram um disco sob o título “Jubileu de Prata”, em comemoração aos 25 anos de criação do trio. Em 1978 morreu um dos pais do trio elétrico, Adolfo Nascimento, o Dodô. Em 1997 o outro pai do trio elétrico, Osmar Macêdo, faleceu e teve seu sepultamento realizado com um cortejo de trios elétricos passando na Praça Castro Alves. 

Boa parte de todas essas histórias estão preservadas em um livro lançado 50 anos depois da invenção do trio elétrico. O trabalho é do professor universitário e doutor em Literatura, Fred Góes, e foi lançado em fevereiro de 2000, nas comemorações do cinquentenário da invenção de Dodô e Osmar. Trata-se de um resgate histórico de cinco décadas de Carnaval, através de pesquisa, depoimentos e fotografias, feito com patrocínio da Copene, e editado pela Corrupio. O livro “50 anos de trio elétrico” é a segunda obra do autor sobre o tema. Em 1982, ele lançou O país do Carnaval elétrico, cobrindo o período de 1950 até começo dos anos 80. O livro narra desde a invenção baiana até as transformações técnicas e estéticas determinadas pelo trio elétrico. Estão lá registrados o aparecimento do trio Armandinho, Dodô & Osmar, em meados dos anos 70; como Moraes Moreira foi o primeiro a cantar em cima de um trio, dentre outras curiosidades. 

 

Fonte: 
http://cliquemusic.uol.com.br/zbr/trio_eletrico_dodo_e_osmar.asp 
revsta Veja , 9 de julho de 1997, página 112 
http://www.carnaval.salvador.ba.gov.br/historia_cro.asp 
http://ibahia.globo.com/patrimonio/trio_eletrico.asp 
http://vocevai.uol.com.br/materia4.asp?m=77&p=2 
http://www.atarde.com.br/materia.php3?mes=03&ano=2000&id_materia=212170 

acesso em abril de 2002

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