Xavante

 

O engenheiro João Augusto Conrado do Amaral Gurgel gosta de lembrar de seus tempos de infância, quando passava férias na fazenda do avô materno, José de Góis Conrado, nos arredores de Franca – sua cidade natal, no interior do Estado de São Paulo. Foi nas oficinas desse avô, dono de uma selaria e, depois, de uma pioneira fábrica de calçados, que Gurgel descobriu seu lado “arteiro”. Começou transformando triciclos em bicicletas, cobrando o preço de ficar com a roda restante. Muitas rodas e águas rolaram desde então. Conhecido pela campanha feroz que move contra o Proálcool, esse inventor nato (tem mais de 100 projetos patenteados, de um carro elétrico ao motor com suspensão pendular utilizado no Supermini). A cidade de Rio Claro, no interior de São Paulo, já sediou uma importante indústria nacional de automóveis. Fabricou lá durante duas décadas utilitários, carros urbanos e até elétricos. Foi fundada em 1°. de setembro de 1969 pelo intrépido engenheiro mecânico e eletricista João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, que sempre sonhou com o carro genuinamente brasileiro. Devido às exportações que sua empresa passou a fazer com o sucesso dos produtos, ele sempre dizia que sua fábrica não era uma multinacional, e sim “muitonacional”. O capital era 100% brasileiro.


Gurgel fala do início de sua carreira: “Fiz o curso de mecânica elétrica na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Tinha uma base muito forte em matemática. Nos anos da Poli, meu passeio preferido a caminho da escola era passar pela Rua Florêncio de Abreu, mexendo em peças. Um dia vi um motor americano Onan de 2 cilindros e tive a ideia de fazer um projeto de carro pequeno. Como estava no quinto ano, um professor encomendara como trabalho de formatura um guindaste de coluna. Resolvi surpreender com o meu projeto do carrinho. “Eu não pedi um carro, Gurgel”. Se você não apresentar um projeto de guindaste, vai ser reprovado”, disse o professor. “Vou fazer”, respondi. “Mas o senhor nem quer ver o projeto?” A resposta dele não foi nada animadora: “Não entendo de automóvel, e estamos num curso de mecânica. Você deveria estar projetando guindastes, ponte rolante. Lembre: automóvel não se fabrica, se compra. E tecnologia de carro é coisa de multinacional”. .

“Aquilo foi para mim um desafio. Fiz o guindaste, mas ficou a ideia do carro. Saí da escola, fui trabalhar na Cobrasma, uma fábrica de material ferroviário. Mas meu projeto estava delineado: ir aos Estados Unidos aprender sobre carro e motor. A General Motors tinha na época um programa para estagiários, e me candidatei. “Mas você já é engenheiro”, me disseram. “Este curso é para principiantes”. Quanto você ganha na Cobrasma?” Era um salário de 10 milhões. Milhões não sei de quê [risos], mas lembro que o valor era esse. “Nosso salário para estagiários é de 2,5 milhões”, disse o entrevistador. Topei no ato. Me dediquei muito, consegui a bolsa e fui enviado para o General Motors institute, nos Estados Unidos. Passei dois anos lá, trabalhando na Buick Motor Division, na Corvette, que estava começando, e na Pontiac. Ganhei muito prêmio por sugestões que dava. Voltei, fiquei mais dois anos na GM aqui, no total foram cinco anos, um ótimo aprendizado. Aí a Ford me chamou.”

“Isso já foi em 1956. Eles queriam que eu participasse do Grupo Executivo da Indústria Automobilística, o Geia, que criou os parâmetros para a implantação das montadoras no Brasil. Eu era dos poucos brasileiros que conhecia o assunto com abrangência, da fábrica ao motor, do mercado à transmissão. Fui colaborar com a Ford. Ali perto da sede da empresa na época, no bairro do Ipiranga, em São Paulo, começava a montagem do Fusca. Quem dirigia a operação da Volkswagen era o Bobby Schultz-Wenk. Convidei meu chefe para ir até lá, examinar o pequeno carro que poderia ser a galinha dos ovos de ouro. A General Motors não tinha planos de fabricar carro aqui, apenas caminhões. A Ford seguia o mesmo caminho, o que eu considerava um erro. Ao voltar da visita à Volkswagen, meu chefe falou: “Isso não passa de um tiro n’água, ninguém vai querer comprar esse troço”. E um carro horroroso, não vai vender nada. O Brasil é o país dos Cadillac”. Bem, um dia chegou a notícia: a Volks acabava de comprar um terreno de 1 milhão de metros quadrados em São Bernardo do Campo (SP). “Certamente eles vão criar boi lá”, esse foi o único comentário que fizeram…”

Este homem dinâmico e de grandes ideias sempre inovou, sempre foi original — e quase tudo o que aplicou deu certo. Formou-se na Escola Politécnica de São Paulo em 1949 e, em 1953, no General Motors Institute nos Estados Unidos. Começou fazendo minicarros para crianças, no caso réplicas de um Karmann-Ghia e de um Corvette. Eram muito fiéis, bem acabadas e comportavam duas crianças. Eram movidos por motores monocilíndricos. O primeiro modelo para adultos foi um bugue com linhas muito modernas e interessantes, com chassi, motor e suspensão Volkswagen. Chamava-se Ipanema. Gurgel sempre batizou seus carros com nomes bem brasileiros e homenageava nossas tribos de índios.

Gurgel conta como foi à origem do projeto Xavante: “Eu tinha apenas 50 000 dólares e foi com isso que comecei. Fazendo carro de criança, fazendo kart. Eu era dono de uma fábrica de plástico, a Moplast. que fornecia todos os “alka-seltzers”, os luminosos com o símbolo VW para os pontos de venda da marca [risos]. Com o dinheiro que ganhava com o plástico, fazia os karts. Correram para a Gurgel meninos como o Wilson Fittipaldi Jr., o Emerson. A Gurgel se tornou campeã em kart. Em 1966. levei ao Bobby Schultz-Wenk a ideia de um carrinho esportivo. “Não posso”, disse ele. “Temos um contrato com a Karmann-Ghia”. Agora, se for um carro bem simples, tudo bem.” Foi à primeira vez no mundo que a Volkswagen vendeu chassi para um particular. Comecei a fazer o Ipanema. Era o início dos bugues. Em 1967, um oficial da Aeronáutica fez um convite para participarmos de uma parada de 7 de Setembro. “Não dá para fazer uns jipes, pintar de azul-aeronáutica, para o nosso desfile?” Cortei uns Ipanemas, acrescentei algumas pás nas portas, transformando-os em jipes militares. Um sucesso na parada. Aí começamos a vender o jipe. Depois, passamos a fazer o chassi. O novo jipe se chamou Xavante. “

 

Em 1973 chegava o Xavante, que daria início ao sucesso da marca. Seria seu principal produto durante toda a evolução e existência da fábrica. De início com a sigla X10, não era mais um bugue, mas um jipe que gostava de estradas ruins e não se importava com a meteorologia. Sobre o capô dianteiro era notável a presença do estepe. Sua distância do solo era grande, o para-brisa rebatia para melhor sentir-se o vento e a capota era de lona.

O Xavante, cujo nome rendeu uma disputa com a Embraer pelo uso do nome, tinha linhas curvas, seguindo uma tendência dos bugues da época. Um par de pás afixadas nas portas, para cavar e sair de situações mais extremas, chamava a atenção. Este acessório inédito anunciava o propósito do veículo e o identificava logo. Foi incorporado à linha pela participação do Xavante em desfiles militares. O jipe era equipado com a tradicional, simples e robusta mecânica Volkswagen refrigerada a ar, com motor e tração traseiros.

O acesso ao motor nunca foi dos mais favoráveis: era feito por uma tampa estreita e não muito comprida. O chassi era uma união de plástico e aço (projeto patenteado pela Gurgel desde o início de sua aplicação, denominado Plasteel), que aliava alta resistência à torção e difícil deformação. A carroceria era em plástico reforçado com fibra-de-vidro (FRP). Conta-se que, na fábrica, existia um taco de beisebol para que os visitantes batessem forte sobre a carroceria para testar a resistência. Não amassava, mas logicamente o teste pouco comum era feito antes de o carro receber pintura. A carroceria e o chassi formavam um só bloco. Além do Plasteel, outro recurso interessante do Xavante era o Selectraction. Tratava-se de um sistema movido por alavancas, ao lado do freio de estacionamento, para frear uma das rodas traseiras. Era muito útil em atoleiros, pois freando uma das rodas que estivesse girando em falso a força era transmitida à outra — característica de todo diferencial –, facilitando a saída do barro. Com este sistema o carro ficava mais leve e econômico do que se tivesse tração nas quatro rodas. Este recurso, patenteado pela Gurgel foi licenciado para a Fábrica Dacunha que produziu o Jipe JEG, equipou estes com esse recurso.

O Xavante logo agradou ao público, por sair da concepção tradicional dos bugues, e ao Exército brasileiro, que fez grande encomenda. Havia uma versão militar especialmente produzida para este fim, o que deu ótimo impulso à produção. Na primeira reestilização, em 1975, as linhas da carroceria ficaram mais retas. O estepe agora ficava sob o capô, mas o ressalto neste anunciava sua presença. Sobre os para-lamas dianteiros ficavam as lanternas de direção, idênticas às do Fusca.

Empresas que trabalhavam com reflorestamento o utilizavam como veículo fora-de-estrada, por ser uma opção mais barata que o Toyota Bandeirante e bem robusta. Serviu como táxi em cidades do litoral, como Mostarda, no Rio Grande do Sul. A versão tinha bagageiro no teto para carregar mais malas, já que seu porta-malas era muito limitado. A corrosão não afetava sua estrutura. Também foi usado em canteiros de obras pela Petrobras, Nuclebrás, Emater, Furnas, etc. e pelo Exército brasileiro. Sempre longe do asfalto e perto da terra, onde se sentia à vontade. Além do X10, mais simples, existia o X12, versão civil do jipe das forças armadas. O motor era o mesmo 1,6-litro de um só carburador, que fornecia 49 cv e usava a relação de diferencial mais curta do Fusca 1300 (4,375:1 no lugar de 4,125:1). Atrás das portas havia uma pequena grade plástica para ventilação do motor. A velocidade final não chegava a empolgar: fazia no máximo 108 km/h e de 0 a 100 km/h levava penosos 38 s. Mas seu objetivo era mostrar serviço e desempenho com relativo conforto em caminhos difíceis, pouco apropriados a carros de passeio. Além do sonho de um carro 100% brasileiro, Gurgel priorizava o uso da terra para alimentar pessoas, não veículos. Assim, certo dia decidiu não mais oferecer seus modelos — como o X12 — com motor a álcool

 

Quando comparado a Henry Ford, Gurgel respondeu: “Eu admiro o Henry Ford, embora a ideia da produção em linha de montagem não tenha sido dele, mas de um padre amigo, que lhe perguntou se o gerente, se a diretoria, se o operário da Ford podiam comprar o veículo que fabricavam”. Aí o Ford captou a mensagem e partiu para a produção de um carro que todo mundo pudesse comprar. Essa filosofia vale copiar, sem dúvida. Ford foi um dos maiores revolucionários de todos os tempos. Uma linha de montagem e um carro barato. Ele chegou a fabricar 2,4 milhões de carros no ano de 1922! O Hitler se inspirou no Ford para planejar, em 1933, um carro barato, o Fusca, e a motorização foi à alavanca da modernização da Alemanha. Se eu fabricar um carro com as mesmas características, estarei dando certo. Claro que a pressão das multinacionais aqui é pesada – e o Ford não sofreu pressão. Já disseram: “Deixa o Gurgel crescer, que depois a gente compra tudo dele…”

 

Fonte:

http://www.uol.com.br/bestcars/classicos/gurgel-1.htm

Acesso em janeiro de 2002

http://freehost18.websamba.com/rodrigao/brasileiras/brgurg.htm

Acesso em novembro de 2002

http://gurgelbr800.sites.uol.com.br/materias/quatrorodas/389/

Acesso em novembro de 2003

http://www.empresario.com.br/memoria/entrevista.php3?Pic_me=206

Acesso em julho de 2004

 

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