Carlos Chagas é, sem dúvida, a figura mais fascinante entre os sábios brasileiros. Seus atributos de pesquisador eram profundos: curiosidade insaciável, percepção aguda, memória viva e técnica especializada, particularmente na Entomologia, Protozoologia e Clínica. Não só descobriu a Doença de Chagas ou Tripanosomose Americana, como foi o primeiro cientista a mostrar a importância dos mosquitos domésticos na transmissão da malária e a defender a teoria de ser o impaludismo moléstia domiciliar. Daí sempre propor a profilaxia desta doença na base da luta antianofélica, nas moradias. A justeza de seus estudos foi cabalmente provada com o emprego do DDT e de outros inseticidas residuais.
A saúde pública brasileira sofreu modificações fundamentais no início do século 20. A geração de médicos que comandou a época essas mudanças contava com nomes como Oswaldo Cruz e Adolpho Lutz, responsáveis pela grande reforma sanitária do Rio de Janeiro e de São Paulo, respectivamente. Ao lado de ambos, um discípulo de Oswaldo Cruz também é sempre lembrado: Carlos Chagas. Chagas é um caso à parte na história da ciência: ele foi o primeiro e único até hoje a identificar todo o ciclo de uma doença – que hoje leva seu nome. O médico descobriu e descreveu o vetor da moléstia, o agente causal, o reservatório doméstico e a manifestação em humanos. Esse foi seu maior feito, mas não o único. Ele teve também contribuição fundamental para o combate da malária, para o desenvolvimento da pesquisa e expansão das atividades do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), para uma reforma do sistema de saúde pública no Brasil e para a formação de pessoal especializado em higiene pública e medicina tropical.
Chagas nasceu em 9 de julho de 1879 em Oliveira (MG). Por influência de um tio, interessou-se pela medicina. Em 1897, ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde teria professores como Miguel Couto e Francisco Fajardo. A faculdade sofria então influência da revolução pasteuriana e começava a valorizar a medicina experimental e a pesquisa em laboratório. Esses procedimentos eram adotados também no IOC, conhecido à época como Instituto Manguinhos, onde Chagas fez sua tese de doutoramento, Estudos hematológicos no impaludismo, sobre orientação de seu grande mestre: Oswaldo Cruz. Embora pretendesse se dedicar à clínica, Chagas foi cooptado por Cruz para a área de saúde pública. Participou de diversas expedições do instituto para combater a malária, e em uma delas, descobriu a doença de Chagas. Cruz tinha grande orgulho de seu discípulo, e disse certa vez de sua principal descoberta: “Nunca até agora, nos domínios das pesquisas biológicas, se tinha feito um descobrimento tão complexo e brilhante e, o que mais, por um só pesquisador” . Após a morte do mestre, Chagas sucedeu-o na direção do Instituto e na Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP). Assim como Cruz, Carlos Chagas enfrentou vários opositores a suas descobertas e ações.
Tendo em vista o trabalho realizado por Chagas em sua tese de doutoramento, Oswaldo Cruz o requisita, em março de 1905, para a missão de controlar a epidemia de malária que assolava o município de Itatinga, no estado de São Paulo. A doença atacava a maioria dos trabalhadores da Companhia Docas de Santos, que construía uma represa na região, causando a paralisação das obras. Entusiasmado pelo desafio, Chagas segue para Itatinga e lá realiza a primeira campanha bem-sucedida contra a malária no Brasil, introduzindo procedimentos que passariam a ser corriqueiros nas campanhas subsequentes. Segundo ele, para se impedir a propagação da doença em regiões em que não havia ações sistemáticas de saneamento, fazia-se necessário concentrar as medidas preventivas nos locais onde viviam os homens e os mosquitos infectados com o parasito da malária. Seguindo tal orientação, em cinco meses Chagas consegue debelar o surto da doença. De volta ao Rio, continua a servir à Diretoria Geral de Saúde Pública e, em 19 de março de 1906, transfere-se para o Instituto de Manguinhos. No ano seguinte, Oswaldo Cruz é solicitado pela Inspetoria Geral de Obras Públicas a organizar o saneamento da Baixada Fluminense, onde estavam sendo realizadas obras de captação de água para o Rio de Janeiro. Juntamente com Arthur Neiva, também pesquisador de Manguinhos, Chagas parte para Xerém e o êxito das medidas ali adotadas confirma sua teoria da infecção domiciliar da malária.
Em 1906, Carlos Chagas iniciou as publicações sobre a profilaxia da malária, defendendo a ideia da infecção domiciliar, o que o motivou a descrever varias espécies novas de mosquitos, destacando-se principalmente a “Celia brasiliensis”, que, pelos hábitos diurnos, pela primeira vez revelados em um “anofelino”, constituiu um campo do mais alto interesse, na profilaxia da moléstia. Durante esse trabalho de campo e laboratorio, Chagas descobriu o “Tripanosoma minasensis” em 1908. Em 1909 descreve o “Tripanosoma cruzi”, que tão grande repercussão ia ter no mundo inteiro. Como protozoologista, além de tripanozomas novos descritos, ele estudou, só ou com Hartmann e estabeleceu dados novos sobre amebas, hemogregarinas, coccideas e ciliados parasitos.
Diante do sucesso alcançado nestas duas campanhas, ainda em 1907 Chagas é incumbido por Oswaldo Cruz de organizar, com Belisário Penna, médico da Diretoria Geral de Saúde Pública, o controle da malária no norte de Minas Gerais. A doença prejudicava seriamente as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora, comprometendo o projeto que pretendia unir o norte ao sul do país com a expansão da ferrovia do Rio de Janeiro a Belém do Pará. Na cidade de Lassance, Chagas realiza a profilaxia da malária, mas, no decorrer do ano seguinte, seus trabalhos tomam um rumo inesperado. Ali ele iria identificar uma nova doença humana, descoberta que marcaria decisivamente sua trajetória profissional.
Até a campanha antipalúdica de Itatinga, a profilaxia da malária consistia basicamente em tratar os doentes com quinina e combater as larvas do mosquito transmissor lançando substâncias tóxicas nos lagos, represas e demais reservas de água estagnada. Carlos Chagas inaugura nova concepção para a prevenção da doença, segundo a qual é preciso impedir que o homem doente passe o parasita para o mosquito e que este, contaminado, infecte o homem são. Chagas formula o seguinte raciocínio: o mosquito transmissor se contamina ao sugar o sangue parasitado do homem doente, no leito, e em seguida perde grande parte de sua capacidade de voo, pousando nas paredes e móveis da casa enquanto digere o sangue sugado. Portanto, esse seria o melhor momento para se fazer o combate ao mosquito e assim romper o ciclo de propagação da doença. Para isso, as casas deveriam ser desinfetadas mediante a queima de piretro, produto com base em enxofre e que elimina o mosquito alado (também utilizado por Oswaldo Cruz contra o transmissor da febre amarela). Posteriormente, a generalização do uso de inseticidas na fumigação das casas conferiria maior eficácia ao método, que passa a ser amplamente utilizado para a profilaxia da malária em várias regiões do mundo. A teoria da infecção domiciliária da malária é divulgada por Chagas no trabalho Prophylaxia do impaludismo , publicado em 1907, mas sua importância seria reconhecida bem mais tarde, no Congresso Internacional de Malariologia, realizado em 1925 em Roma. As vantagens do método preventivo por ele formulado e a importância social do combate à doença, que representava um dos principais problemas de saúde pública do país, sobretudo em suas regiões rurais, são analisadas por Chagas na conferência Lucta contra a malária , pronunciada em 1933.
O Decreto n. 1812, publicado em 14 de dezembro de 1907 inaugura o Instituto de Patologia Experimental de Manguinhos, destinando-o prioritariamente, no que se refere as suas atividades cientificas, ao estudo das moléstias infecciosas e parasitarias do homem, dos animais e plantas, além do estudo das questões referentes a higiene e a zoologia. A descoberta de Chagas, renderia ao Instituto um credito de 500:000, liberado pelo Ministério da Justiça e Negócios Interiores pelo Decreto n. 9346 de 24 de janeiro de 1912, sendo 300:000 destinados a construção de um hospital apropriado ao tratamento da moléstia de Chagas e 200:000 para a realização de experiências no campo da profilaxia e da assistência medica nas zonas flageladas pela doença. Este fato iria consolidar o domínio da Medicina Tropical e por consequência iria desencadear o estimulo de recursos destinados as moléstias tropicais, possibilitando a expansão do patrimônio físico e cientifico do Instituto Oswaldo Cruz.
Uma das grandes preocupações do sanitarismo na época era permitir o desenvolvimento comercial e a integração do país, e a doença estava prejudicando a expansão da estrada de ferro Central do Brasil. Na cidade de Lassance, Chagas montou um ambulatório no alpendre de uma casa, além de um alojamento e um laboratório em um vagão de trem. Ele e Penna já estavam na cidade há mais de um ano quando o chefe dos engenheiros, Cantarino Mota, mostrou-lhes um inseto hematófago conhecido como barbeiro, por ter o hábito de morder o rosto. Chagas decidiu investigar a possibilidade de esse inseto transmitir algum parasita ao homem ou outro vertebrado, e encontrou formas parasitárias no intestino do barbeiro. Desconfiado de que se tratasse de um estágio evolutivo do Trypanosoma minasense, protozoário recém-descoberto por ele no sangue de um macaco sagui, ele enviou barbeiros contaminados a Oswaldo Cruz, para que ele os alimentasse no sangue de saguis criados no laboratório de Manguinhos. Um mês depois, Cruz constatou a presença de tripanossomos no sangue dos macacos doentes. Chagas voltou ao Rio de Janeiro e logo constatou que não se tratava do T. minasense ou de qualquer outra espécie conhecida do mesmo gênero. “Em homenagem ao mestre” , ele batizou o parasita de Trypanosoma cruzi.
O médico retornou a Lassance em busca de casos de humanos infectados pelo parasita. Visitou em vão casas infestadas pelo inseto, até que encontrou um gato que sofria do mal. Ele não desistiu da busca em humanos e, após algum tempo, voltou à casa onde encontrou o gato. Nessa visita, encontrou Berenice, uma criança da casa, em estado febril. No sangue da menina, que estava na fase aguda da doença (primeiras 4 a 8 semanas), ele descobriu o parasita. Chagas desvelou assim a última etapa do mal, tornando-se o único pesquisador até hoje a descrever todo o ciclo de uma doença. Chagas seria ainda o primeiro a descortinar a importância da moléstia, afirmando que onde houvesse o barbeiro contaminado, haveria pessoas infectadas. A descoberta repercutiu tanto no Brasil como no exterior, e a Academia de Medicina fez de Chagas membro extraordinário, por não haver vaga disponível naquele momento. No entanto, como geralmente ocorre com novos achados, Chagas teve sua descoberta contestada, primeiro na Argentina e em seguida no Brasil, envolvendo a Academia em um debate em que se percebia mais vaidade que fundamentos conceituais. Embora erros pequenos tenham sido apontados, muitas vezes por ele mesmo, as pesquisas comprovariam suas descobertas e, a partir dos anos 1940, muitas das dúvidas sobre a doença seriam esclarecidas.
Em setembro de 1916, durante o Primeiro Congresso Médico Panamericano realizado na capital argentina, a doença de Chagas é questionada pelo pesquisador alemão Rudolf Kraus, diretor do Instituto de Bacteriologia de Buenos Aires. Kraus alega que em suas pesquisas na região do Chaco argentino encontrara inúmeros barbeiros infectados com o Trypanosoma cruzi mas, a despeito disso, nenhum caso da doença fora observado. Com base nesse argumento, já havia divulgado em várias ocasiões trabalhos em que punha em dúvida a existência da tripanossomíase americana. A defesa de Chagas é apresentada em sessão especial do congresso no dia 20 de setembro. Em seu pronunciamento, argumenta que se tratava de uma doença ainda em fase de adaptação ao gênero humano e, por isso, os dados negativos de Kraus poderiam indicar que não se havia completado o ciclo biológico na referida região. Sua conferência é muito bem recebida pelos participantes do encontro, mas a polêmica sobre a doença de Chagas estava apenas começando.
Na verdade, o debate no Congresso de Buenos Aires é o preâmbulo da controvérsia que teria lugar no Rio de Janeiro na Academia Nacional de Medicina em 1923. Em 23 de novembro de 1923, o parecer final da comissão é apresentado aos membros da Academia e seus termos são, na maior parte, favoráveis a Chagas. A comissão reconhece que a autoria da descoberta pertence efetivamente a Chagas, mas mantém a dúvida quanto à tese por este defendida de que a tripanossomíase americana era uma enfermidade que grassava por vastas regiões do país. Embora o resultado formal da controvérsia seja favorável a Chagas, as suspeitas lançadas na polêmica permaneceriam até os anos 30, gerando dificuldades ao estudo e à difusão dos conhecimentos sobre a enfermidade no país. Logo após a morte de Chagas, ocorrida em 8 de novembro de 1934, essa situação começa a ser revertida, em consequência dos estudos realizados na Argentina, por Salvador Mazza e Cecílio Romana, e no Brasil, pelos trabalhos desenvolvidos sob a liderança de Evandro Chagas e Emmanuel Dias, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz. Em 1959, o Primeiro Congresso Internacional de Doença de Chagas, realizado no Rio de Janeiro, torna evidente que a doença descoberta há cinquenta anos achava-se finalmente reconhecida como assunto de grande importância social e que a trilha científica aberta por Carlos Chagas deveria ser ampliada e aprofundada na busca de novos caminhos e soluções.
Apesar do trabalho desenvolvido em Lassance, Chagas foi combatido e desacreditado por pessoas como o higienista Afrânio Peixoto. Quando o Departamento de Saúde Pública foi criado, o poderoso Afrânio Peixoto tinha a pretensão de dirigi-lo. Com a nomeação de Chagas, Afrânio tornou-se o mais virulento inimigo do descobridor da tripanossomíase. O cientista Amílcar Vianna descreve esta fase: “Não se acreditava em doença de Chagas. Dizia-se que era uma doença que dava em pessoas desimportantes, que viviam em lugares sem muita importância e por isso ela não valia nada. O grande mérito da descoberta dos focos de Bambuí foi chamar a atenção para a doença, mostrar que ela não era tão desimportante assim e que o problema não estava só localizado em Bambuí, mas no Brasil inteiro, ou pelo menos, em grande parte do território nacional”.
O médico faleceu subitamente em 8 de novembro de 1934, vítima de um ataque cardíaco. “Há muita controvérsia acerca desse assunto” , diz sua neta Maria da Glória. Segundo ela, especulou-se que o ataque teria sido consequência do tabagismo excessivo ou da doença que ele descobrira. “Minha avó guardava um canivete com sangue dele, e dizia que na hora em que meu avô teve o ataque, ele tentou fazer uma sangria”. Quatro vezes indicado para o prêmio Nobel de Medicina, Carlos Justiniano Ribeiro das Chagas (1878-1934) mereceria ter sido agraciado. Num caso único da Medicina de todos os tempos, Carlos Chagas descobriu um parasita (Trypanozoma cruzi), o inseto que o transmitia (“barbeiro” ou chupança), os animais que o mantinham na natureza (tatus e outros mamíferos silvestres) e a doença que esse parasita determinava no homem (Doença de Chagas). Segundo relato de Marilia Coutinho (Folha de São Paulo, caderno Mais, pág.11, 07/02/1999) não foi premiado, em 1921, porque “organismos brasileiros consultados pela Academia Sueca, teriam desaconselhado a indicação” . E pensar que naquele ano nem sequer houve premiação no quesito Medicina e Fisiologia. Em 1912 Carlos Chagas recebeu o prêmio Schaudin, o mais prestigiado na área de protozoologia, vencendo cinco candidatos europeus.
As quatro indicações de Chagas ao Nobel foram confirmadas por Nils Ringertz, secretário da Comissão Nobel para Fisiologia e Medicina, do Instituto Karolinska, em Estocolmo, na Suécia. A indicação de Chagas ao Nobel de 1921 foi examinada por Gunnar Hedén, que “aparentemente” fez um relatório oral à comissão. Nada consta quanto à indicação de 1913. Nesse ano, Charles R. Richet levou o prêmio em reconhecimento ao seu trabalho de descoberta da reação anafilática, em que um organismo reage à injeção na corrente sanguínea de uma determinada proteína. A primeira indicação oficial, datada de 1º de janeiro de 1913, foi de Pirajá da Silva. A segunda, de 21 de dezembro de 1920, foi feita por H. de Gouvêa. Foram feitas duas outras indicações não oficiais, segundo Ringertz.
O principal feito da carreira de Chagas foi descobrir uma doença que tem pouca possibilidade de cura uma vez atingida sua fase crônica. Ela causa arritmia, enfraquece o coração, ataca o esôfago dificultando a deglutição, complica a evacuação e atinge o sistema nervoso, o que faz com que a vítima sinta calor e estresse contínuo. Hoje, a doença atinge pessoas em 2700 municípios brasileiros e pode ser encontrada em todo o continente americano. A tripanossomíase americana ou doença de Chagas é causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi. O parasita pode penetrar no corpo humano por três caminhos: por meio das fezes do barbeiro, que são esfregadas sobre a picada; por transfusão de sangue ou de mãe para filho. “O caso da transmissão do barbeiro é mais comum em crianças pequenas, pois elas passam o dia no berço sem se movimentar”, afirma João Carlos Dias, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e representante da Organização Mundial de Saúde para a doença de Chagas. Cerca de 10% das crianças infectadas falecem na fase inicial da moléstia.
Uma vez passada a fase aguda da doença, o corpo desenvolve anticorpos e o mal entra em sua fase crônica, na qual é difícil encontrar o Trypanosoma cruzi no sangue. Na época de Carlos Chagas, o diagnóstico nessa fase tinha de ser por exame sorológico, que identificava os anticorpos produzidos. Também naquela época, muitos dos exames eram feitos com barbeiros não infectados que picavam a pessoa suspeita de estar contaminada e eram analisados em seguida. Essa tecnica é conhecida como xenodiagnóstico e é muito pouco usada hoje em dia, servindo para isolar diferentes cepas do protozoário. Algumas das afirmações de Chagas sobre a doença foram mais tarde contestadas cientificamente. Ele acreditava que o mal estava associado ao bócio, também muito comum na região de Lassance. O médico achava ainda que a doença causava cretinismo (distúrbio que ocorre na infância e é caracterizado por retardamento mental), pois muitos de seus pacientes sofriam do mal. “A região era de populações como de quilombos, e as crianças eram muitas vezes filhas de irmãos ou primos, por isso havia um alto índice de cretinismo”, explica Dias. Outra teoria de Chagas que mais tarde se mostrou equivocada foi a de que o barbeiro transmitia o parasita pela picada. Depois de verificar que o barbeiro dejetava durante ou após as suas refeições de sangue, Arthur Neiva formula a hipótese de que, ao se coçar, o indivíduo introduz estas fezes – que contêm as formas infectantes do tripanossomo – pela pele escarificada ou por uma mucosa, como a ocular. Em 1912, o parasitologista francês Emille Brumpt, que realizava pesquisas em São Paulo, demonstra experimentalmente esse modo de transmissão, definitivamente descrito e estabelecido por Emmanuel Dias na década de 1930. A doença de Chagas não mata, mas suas consequências podem ser fatais. “As pessoas geralmente morrem de problemas no coração em decorrência do mal”, afirma Dias. Ele desenvolve uma pesquisa na região de Lassance que visa identificar se os tripanossomos encontrados nos doentes têm as mesmas características daqueles encontrados em Berenice por Chagas.
A pesquisadora Nacy Stephan destaca que “Ao especializar-se no campo da microbiologia, o Instituto Oswaldo Cruz se beneficiou da fase de desenvolvimento atingida pelo campo no início da década de 1900. Muitas das ideias fundamentais da bacteriologia e da soroterapia, bem como o conceito de inseto transmissor, já haviam sido elaboradas em algum detalhe pelos cientistas europeus na época em que foi organizada uma equipe de microbiologistas no Brasil. Nesse ponto os brasileiros começaram a investigar segundo linhas pré-estabelecidas. O mal de chagas por exemplo foi descoberto em parte graças aos conhecimentos de Carlos Chagas da transmissão da malária. Ele raciocinou, por analogia, que o triatoma podia ser um inseto transmissor do tripanossoma suspeito de ter efeitos patológicos nos seres humanos. Embora seu trabalho fosse portanto intimamente dependente de conceitos elaborados com relação a outras doenças, sua descoberta, apesar de tudo, foi original e extremamente importante para estimular uma ampla gama de atividades de pesquisas durante alguns anos.”
No livro “A doença de Chagas – história de uma calamidade continental”, do historiador da ciência François Delaporte. A partir da análise de um extenso apanhado de documentos históricos que reconstituem a trajetória de Chagas, o livro questiona a atribuição de todos os méritos da descoberta ao pesquisador e propõe uma reflexão sobre a historiografia oficial. Poderia ser ela apenas ‘uma’ das histórias possíveis a serem contadas sobre um fato? Os dados coletados por Delaporte indicam que sim. O autor aponta contradições nos relatos históricos sobre o método, os objetivos de pesquisa e até a ordem em que avanços foram feitos. Delaporte afirma, por exemplo, que “Chagas apresentou os fatos relativos à sua descoberta de duas maneiras diferentes: seja partindo do parasita no inseto em direção à doença ou, inversamente, a partir de uma patologia desconhecida em direção ao agente causador e ao transmissor”. Segundo ele, não há uma versão correta; ambas teriam sido construídas para “ocultar o caminho efetivamente seguido”, que envolveria o acaso como elemento determinante.
Ainda segundo Delaporte, “Chagas encontrou uma doença que ele não procurava de início”. Ele ressalta que só a partir de 1915 “aparece” a versão de que Chagas teria descoberto a existência de uma “doença insólita” antes de descobrir o parasita. Para o autor, esse é um exemplo de distorção que precisa ser elucidado para que a história da ciência no Brasil seja (re) escrita de forma a acabar com mitos e falsos modelos que a perseguem. O autor introduz o livro a partir de uma comparação original entre a arquitetura das casas de pau-a-pique do interior de Minas Gerais e do castelo de Manguinhos. A oposição entre a simplicidade das choupanas e a sofisticação de um dos maiores centros irradiadores de ciência do Brasil, reflete as condições em que a moléstia foi descoberta. Tal contradição teria permitido o encontro “entre o pensamento médico brasileiro e um inseto”, ou seja, entre o conhecimento científico constituído dentro da tradição ocidental e a pobre e distante realidade da população do interior do Brasil.
Fonte: http://servicos.jcruzeiro.com.br/colunas/artigos/20020411ar.shtml
http://www.uol.com.br/cienciahoje/perfis/chagas/chagas1.htm
http://www.prossiga.br/chagas/
http://www.submarino.net/cchagas/nobel.htm
http://www.dbbm.fiocruz.br/www-mem/94sup1/ultimoft.html
http://www4.prossiga.br/chagas/traj/links/textos/arthur.html
http://www.submarino.net/cchagas
http://www.dbbm.fiocruz.br/collecti/history1/2.html
acesso em julho de 2002
Cientistas do Brasil, SBPC, 1998, página 417
Crônicas de Sucesso, Ciência e Tecnologia no Brasil, Ed. Ciência Hoje, pag. 11
Gênese e Evolução da Ciência Brasileira, Nancy Stephan, Ed. Artenova, 1976, página 117
http://www2.uol.com.br/cienciahoje/chdia/n941.htm
acesso em fevereiro de 2004