Há treze anos, desde que defendeu sua tese de doutorado, Vera Luiza Capelozzi, professora associada do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), se dedica a uma tarefa pioneira na ciência nacional: pesquisar marcadores biológicos de prognósticos que possibilitem prever, com um bom grau de certeza, a evolução do câncer de pulmão, uma das neoplasias de mais difícil controle para os oncologistas, e estimar a sobrevida dos pacientes. Marcadores biológicos são moléculas contidas na célula tumoral cuja detecção pode ser efetuada por simples técnicas laboratoriais, como a histoquímica e a imunohistoquímica. Hoje, graças aos estudos da pesquisadora e sua equipe nessa área, patrocinados em parte e nos últimos três anos pela FAPESP, já é possível estimar com 70%, às vezes 80% de exatidão, como será o comportamento de um tumor nesse órgão, sobretudo dos casos em que o câncer está presente em apenas um dos pulmões e o paciente pode ser submetido a uma cirurgia para eliminar esse mal. Essa previsão também fornece importantes informações para o médico sobre a maior ou menor possibilidade de a doença voltar a se manifestar após a operação, norteando, assim, o uso de tratamentos auxiliares como radio ou quimioterapia. A metodologia de análise vem sendo empregada com sucesso em pacientes de câncer do pulmão que foram operados no Hospital das Clínicas de São Paulo.
“Um dos principais objetivos dessas pesquisas era diminuir a subjetividade na avaliação dos tumores de pulmão”, diz Vera Luiza. Muitas vezes, baseados apenas na análise do estágio do tumor e de sua disseminação no tecido, os médicos chegam a resultados discrepantes sobre a evolução de um câncer. Isso porque eles freqüentemente carecem de outros dados, como os marcadores de prognósticos, capazes de auxiliá-los a traçar um quadro evolutivo mais realista da doença. Seguindo uma linha de pesquisa internacional, a professora da USP analisou se havia alguma correlação entre vários marcadores biológicos (DNA ploidia, AgNOR, PCNA, P53, Ki67, entre outros) e a progressão do tumor. O objetivo final do trabalho era chegar a uma espécie de “modelo matemático para prever sobrevida”. Do ponto de vista epidemiológico, os estudos sobre o comportamento biológico do câncer de pulmão são mais do que justificáveis. A doença acomete milhares de pessoas em todo o mundo e é um dos poucos tipos de neoplasias cuja curva de incidência ainda não dá sinais consistentes de queda ou estabilização nem em países desenvolvidos, como os Estados Unidos.
“Entre os cânceres, o de pulmão é hoje o mais significativo em termos de impacto sobre os indivíduos (mortes e perda de qualidade de vida). Quase todos os cânceres de pulmão são causados pelo fumo”, diz o relatório deste ano sobre a saúde no mundo (World Health Report 1999) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Só no Brasil, 20.000 novos casos desse tipo de câncer foram detectados no ano passado e 12.700 pessoas morreram por causa desse problema de saúde (9.400 homens e 3.300 mulheres). Entre os homens brasileiros, é o tipo de câncer com maior incidência e o quinto mais comum entre as mulheres. Nos Estados Unidos, assim como em outros países industrializados, onde, nas últimas décadas, as mulheres passaram a fumar em grande quantidade, as mortes causadas pelo câncer de pulmão já ultrapassam as provocadas pelo tão temido câncer de seio. A comunidade científica acredita que 90% dos casos de câncer de pulmão sejam causados pelo tabagismo.
Os estudos coordenados por Vera Luiza enfocaram basicamente um tipo de câncer do pulmão, o carcinoma de células escamosas, o mais comum deles. O tratamento ideal para esse tipo de câncer é a ressecção cirúrgica (retirada de um órgão em sua totalidade ou parcialmente a fim de extirpar o tumor). O problema é que em cerca de 30% dos pacientes operados o tumor acaba voltando a se manifestar até cinco anos após a cirurgia. Essa constatação levou à seguinte reflexão: se a ciência tivesse como prever com razoável grau de confiabilidade quais entre todos os pacientes operados tendem a apresentar uma recidiva da doença, os médicos poderiam lançar mão de terapias auxiliares (radio ou quimioterapia) nesses indivíduos com predisposição a desenvolver novo tumor, a fim de evitar que isso aconteça. Como se sabe, a radio e a quimioterapia são tratamentos agressivos contra o câncer, que não podem ser prescritos sem um rigor científico, sob pena de causar danos desnecessários aos pacientes.
Um dos marcadores que se mostrou mais eficaz como sinalizador do comportamento de cânceres de pulmão foi a quantificação das regiões organizadoras (NORs, em inglês Nucleolar Organizer Regions) por meio de técnicas argirofílicas ou AgNOR, que significa proteínas nucleolares impregnadas pela prata. Trata-se de um método histoquímico simples e barato, que pode ser empregado em diagnósticos rotineiros realizados em laboratório. Os pesquisadores da USP contaram a expressão de AgNOR em núcleos neoplásicos e concluíram que, no tipo de câncer de pulmão mais comum (carcinomas de células escamosas), os tumores em estágio mais precoce apresentam uma baixa expressão desse marcador. Já os tumores com uma alta quantidade de AgNOR eram justamente os que estavam em um estado mais avançado. Conseqüentemente, a partir da análise da quantidade de AgNOR num tumor, os médicos tinham uma boa pista de quão longa seria a sobrevida de um paciente. Pacientes com baixos índices de AgNOR sobreviviam até cinco anos após a ressecção do tumor, algo muito raro de acontecer nos doentes que apresentavam alta concentração de AgNOR.
Vera Luiza conta que teve de superar algumas dificuldades iniciais para poder levar adiante suas pesquisas na área, sobretudo antes de conseguir patrocínio de agências de pesquisa, como a FAPESP. Ela começou trabalhando com equipamento emprestado e dispunha de um microscópio de apenas uma lente. Não tinha nem computador de uso exclusivo para poder rodar seus modelos matemáticos de previsão de prognóstico de câncer de pulmão. “Usávamos coisas emprestadas dos colegas”, diz a pesquisadora, que hoje conta com microcomputador exclusivo para suas pesquisas, além de um potente microscópio, com uma câmera acoplada, e de um laboratório de patologia molecular, estrutura indispensável para que seu trabalho seja bem feito. A perseverança de Vera Luiza lhe rendeu frutos internacionais. Hoje, alguns dos trabalhos de seu grupo de pesquisadores foram publicados em revistas científicas de prestígio do exterior, como a Chest e Histopathology. Os trabalhos também ganharam reconhecimento em congressos e eventos internacionais. Um dos estudos sobre o papel do AgNOR como marcador biológico em alguns tipos de câncer, por exemplo, ganhou o prêmio de melhor trabalho científico no 49th Annual Meeting of the Japanese Association for Thoracic, em Kyoto, em 1996.
Fonte:
http://www.fapesp.br/ciencia464.htm
acesso em maio de 2002